Há coisas na vida que parecem tão naturais quanto respirar. Quando algo foge desse curso, a gente começa a desconfiar até do próprio sentido das coisas. Lembro de um episódio na minha época de moleque: não pude acompanhar um jogo do Botafogo. Era tempo sem internet, e corri para casa ansioso pelo resultado. Alívio: vitória por 7 a 1, a maior goleada da história do Caio Martins. Mas algo não batia. Minha primeira pergunta foi: “Ué, e o Túlio? Não fez gol?”. O universo tinha dado um passo em falso.
É que certas coisas simplesmente têm de acontecer. Adaptar-se ao progresso é inevitável. Já me acostumei com batata frita congelada em vez da caseira, cada pedaço único e cremoso trocado por cópias previsíveis. Já aceitei a Coca-Cola em garrafa PET, com menos gás do que na de vidro. A vida anda, nos molda. Mas um jogo do Botafogo sem gol de Túlio? Não era normal. Era algo que feria o instinto.
Essa sensação de algo travado, que não flui, lembra muito “Matrix”. Neo, o herói, em meio a uma simulação, às vezes não consegue se mover. Há uma força invisível que o prende, e só ao superá-la ele consegue seguir. O Botafogo estava exatamente nesse estado nos últimos jogos: cada tropeço pesava mais, cada erro aumentava o peso. Nessas horas, não é preciso espetáculo ou a maior aula de futebol da história. Basta vencer. A vitória é a chave que destrava a engrenagem. O simples, quando parece inalcançável, se torna desesperador.
Mas o futebol tem sua sabedoria. Nos momentos de turbulência, sempre voltamos a um porto seguro, aquele lugar que já nos acolheu e nos mostrou o caminho. Como quando descobri que Túlio não tinha marcado porque havia sido poupado, justamente na maior goleada do Botafogo. Ontem, contra o Atlético-MG, o time também se reencontrou com esse porto seguro: jogar com um a menos contra o Galo e, ainda assim, vencer. Foi assim na final da Libertadores de 2024, foi assim de novo agora.
Essa é a sabedoria do futebol: a tradição é a nossa âncora contra qualquer força invisível que nos aprisione. O caminho para o gol pode estar travado, a vida pode nos servir batata frita congelada, mas quando o Botafogo reencontra seu instinto de vitória, a engrenagem volta a girar. O Cocoricóóóóó! é o som do destino retomando seu curso.
Cocoricóóóóó!