
Jair Ventura ainda era criança quando percebeu que ser filho de um tricampeão mundial geraria cobranças. O primeiro impulso foi se afastar do futebol. Hoje, se prepara para o jogo mais importante de sua trajetória de quase um ano à frente do Botafogo. Em entrevista ao GLOBO, ele diz que o jogo de contragolpe é o que mais se adapta ao elenco atual do Botafogo e à rotina do calendário brasileiro. Mostra crença no estilo, certo incômodo com a pressão por resultados e diz sonhar com um título até o fim da temporada. Se for a Libertadores, melhor.
Você ouviu alguns “nãos” em sua tentativa de ser jogador. Treinadores também precisam dizer não. Como isto influenciou sua forma de lidar com jogadores?
Aconteceu muito no sub-20, em 2012. Tinha peneira quase toda semana. Você tinha que dizer pros meninos que não ia aproveitá-los. Passou filme na minha cabeça como aconteceu comigo. É difícil, você está acabando com um sonho. Eu pensei como gostaria que tivessem feito comigo, sendo transparente, dizendo a verdade. Às vezes machuca, mas não é o fim do mundo. É delicado. Penso no que sofri. Não posso deixar os atletas sofrerem.
Você aprendeu em casa que o futebol representa pressão, distância da família. Por que seguiu o caminho?
Paixão. Eu já nasci pressionado. As pessoas perguntavam: “Vai jogar igual ao pai? Joga mais do que o pai?” Eu era muito novo e isso me afastou do futebol. Eu dizia: “Vou ser piloto de F1. Vou ser ourives como minha mãe.” Mas a paixão pelo futebol foi me chamando. Quando vi, já estava no mirim do São Cristóvão. Com 16 anos saí de casa, fiz teste na Holanda, sofri. Meu pai sempre me deu do bom e do melhor. Mas eu queria buscar o meu. Agradeço ser filho de um tricampeão mundial. Mas por que ficar à sombra do meu pai? Fui buscar no campo e não consegui. Aí me preparei para ser treinador.
A vida de treinador vale a pena?
Vale. Você não pode é levar a crítica para o pessoal. A crítica não é para mim, é para o cargo que exerço. O dia-a-dia, a gestão de pessoas, gosto disso. Ver o Vitinho, que treinei no sub-20, ser vendido por milhões; ver o Sassá com um grande contrato no Cruzeiro. E quando vê uma jogada treinada resultar em gol, o jogador olhar para você em reconhecimento, não tem preço.
Jogador reconhece?
Sim. Eu era interino na Série B (em 2015) e no meu primeiro jogo um volante se machucou. Não tinha outro. Pedi ao Luís Ricardo para fazer a função. Ele fez a jogada do gol do Lulinha e apontou o dedo: “Foi você”.
Então, cada vez que um contra-ataque do Botafogo começar na esquerda e terminar em gol pela direita deveriam apontar pra você?
Tá demais isso, né. O Pimpão falou pra mim: “Vão marcar a jogada”. Mas é difícil, é característica. Como a gente joga num losango, o Pimpão fica um pouquinho mais pela esquerda. O homem da saída pela direita é o Bruno Silva, um volante mais ofensivo. Pimpão tem velocidade e o Bruno tem infiltração na área.
A forma de jogar deste Botafogo tem a ver com os jogadores que você tem ou com o estilo que você prefere?
Sempre é a característica do elenco. Tenho meu sistema predileto, minha maneira de pensar, mas não posso insistir em uma coisa que me deixa confortável mas o jogador não pode fazer. Se estou tendo resultado com três volantes e perco dois deles, não posso colocar outros dois para manter o sistema e deixar de usar jogadores de outra característica que estão em momento melhor. Só que, se você perde, falam que você inventou. Não posso deixar de fazer o que acredito. Se eu fizesse o que todo mundo acha, um cara de 37 anos levaria um time de 17º para quinto lugar? Passaria por tantos gigantes como passamos? Disputar o que disputamos praticamente com orçamento de Série B, um dos menores da Libertadores, o menor da semifinal da Copa do Brasil. Falaram em sinal de alerta porque não vencemos os últimos jogos. Seria sinal de alerta se o desempenho não acontecesse. Fomos superiores contra o Palmeiras, por exemplo.
O Botafogo fica mais cômodo no jogo reativo do que com posse de bola?
Sim. E não tenho vergonha. É característica dos jogadores. Temos um poder de marcação muito forte, de retomada de bola. Isso permite retomar e atacar em velocidade. Se tiver jogadores com jogo apoiado (aproximação e troca de passes), vou fazer. Na base, joguei assim por um ano: num 4-2-3-1, pressionando no campo adversário, com Vitinho, Otávio, Gegê e Sassá. Era o que eu tinha.
Mas houve jogos em que o Botafogo teve mais posse.
Contra o Palmeiras, eles viraram Botafogo e nós o Palmeiras. Tivemos o controle e perdemos. Todos os jogos em que tivemos mais posse perdemos. Contra o Avaí, levamos o gol e o Montillo se lesionou. Aí você pensa: coloco mais um atacante ou um volante? Você coloca um atacante, tem quase 80% de posse de bola e 16 finalizações. Perdi o jogo por causa dos três atacantes? Não. Isso me incomoda, tem que analisar o rendimento, não o placar. Entendi que a melhor defesa era o ataque e disseram que perdi porque fui audacioso. Dizer que o Botafogo só sabe de jogar de uma forma está virando um mantra que não é real.
E como deixar o que falam de lado?
Tem que deixar. Se não, você vira um fantoche. Durmo bem porque faço o que eu penso. Do contrário, eu não durmo. Erre com suas convicções. Foi primeira coisa que aprendi. Você vai sofrer pressão e perder o emprego, mas fez o que achou que devia.
Mas você já escalou Lindoso, Matheus Fernandes, João Paulo e Marcos Vinícius juntos. Todos sabem jogar com a bola. O que impede o time de ter iniciativa com mais frequência? O jogo de contragolpe está predominando no país?
Vejo uma tendência, os visitantes vencendo partidas. Quando você tem a posse e propõe o jogo, você fica mais exposto. Vai tocando, a compactação é importantíssima, mas o maior inimigo da compactação é a bola no espaço (às costas da zaga que joga adiantada). Vê quantos gols saem com a bola lançada no espaço, com a movimentação dos atacantes atrás da última linha da defesa.
Então você acredita mais num jogo de contragolpe?
Se eu chego na seleção brasileira e posso escolher jogadores, quero um jogo apoiado, pressão no campo adversário. Mas num clube, tenho que me adequar.
E se você tivesse pré-temporada e menos jogos, mais treinos com este Botafogo?
Faria o jogo apoiado, jamais daria a bola ao adversário. Mas jogar fora de casa, sem a pressão de ter que propor jogo, facilita. O elenco mais caro do Brasil, o Palmeiras, fez isso com a gente: esperou nossos erros. O Corinthians vai lá duas vezes e faz o gol. E não há tempo de treinar, você não trabalha. Do jeito que o Botafogo tem jogado, é só na sala de vídeo que se pode ajustar as coisas.
Há uma tendência de que os treinadores ousem menos?
Já há uma tendência. Ficou claro o que o Cuca fez com a gente. Marcou baixo e esperou nosso erro para contra-atacar.
Você falou na boa retomada de bola desse Botafogo. Mas contra Barcelona e Avaí, a escalação não tirou este poder do time, não distanciou o Botafogo de sua melhor característica?
Discordo, porque a vitória contra o Colo Colo, Olimpia e Estudiantes foi no 4-2-3-1 e com este tipo de formação. Talvez perca em pegada, mas criamos mais do que em outros jogos. E tomamos gol em arremesso lateral, não foi por conta disso. A questão são as funções. Quando eu coloco o Emerson na lateral, eu jogo com três zagueiros? Não. E quando coloco três atacantes, um deles não é atacante. O Pimpão joga em uma das duas linhas de 4, como meia no 4-4-2. Não fica flutuando na área como atacante. Ele recompõe e sai em velocidade, igual como quando coloquei o Gílson ali, ou o Diogo Barbosa no ano passado. Não joguei com três laterais.
As duas linhas de quatro no 4-4-2 do Botafogo são bem características. Mas você define que o time joga num losango…
Você vai me arrebentar para os adversários (risos). Mas vamos lá: é um losango atacando e um 4-4-2 defendendo. Temos essa variação. (Jair, ao citar o losango, refere-se a uma formação na parte ofensiva: por exemplo, com Rodrigo Lindoso mais atrás, Bruno Silva pela direita, Matheus Fernandes pela esquerda e, mais à frente, um meia como Marcos Vinícius, Leo Valencia ou mesmo João Paulo. Rodrigo Pimpão busca a área como segundo atacante). Se perdeu a bola, o Pimpão fecha e faz as duas linhas de quatro. Defende no 4-4-2 ou no 4-5-1. Contra o Nacional lá fizemos um 4-5-1.
O que o levou a adaptar o Bruno Silva pela direita?
Isso é observação da característica. Por isso precisa de tempo, de treino. Quando Bruno não joga, tenho problema com essa saída pela direita. Porque o João Paulo não é um cara de força, de arrancada. Pela esquerda, Pimpão me dá essa saída.
O tempo de clube o ajudou em “descobertas”, como o Matheus Fernandes no lugar do Aírton e as adaptações de zagueiros na lateral?
Matheus joga demais, né? Nível Europa, diferenciado. Perdemos Airton, Montillo, Camilo, Sassá, Joel, Canales, Jonas, Marcinho. Do ano passado, Neilton, Diogo… Então a gente vem conseguindo com um elenco totalmente diferente ir bem em todas as frentes. É a situação do jogo, da filosofia. Os jogadores compram a ideia porque eles são os grandes responsáveis. Não sabia se o Matheus renderia, é dúvida. Tem gente que treina muito bem e vai mal quando entra. Quanto aos zagueiros, Emerson foi meu jogador. Já o Marcelo, observei por características. Não tinha trabalhado com ele na base. Ele é muito rápido. Emerson é muito técnico.
Onde busca modelos de treinos?
Eu tive muitos treinadores, isso foi bom demais. Eu falava: “Isso me me serve, isso eu mudaria”. Às vezes no cinema eu penso num treino e anoto no celular. Falo para a minha esposa se preocupar (risos).
E o filme?
Depois recupera (risos). É bem rápido.
Este Botafogo compete muito. Parece sob medida mais para os mata-matas do que para o Brasileiro…
Podem se chatear comigo, mas quem está só em uma competição leva vantagem. Já jogamos dois jogos com times alternativos que não vencemos, e isso diminui a chance de vencer (no Brasileiro). E eu não trabalho com desculpas, mas tem outra coisa: nós disputamos a pré-Libertadores. Então nossa gasolina vai acabar antes. Nossa conta vai ser paga antes. Tivemos picos de lesões e cansaço no fim dos jogos. Contra o São Paulo, no fim nós queríamos, mas vínhamos de um jogo desgastante, uma atuação fantástica contra o Atlético-MG. E nossa atuação contra o São Paulo foi a pior do ano. A ciência explica.
O mata-mata é prioridade?
Não tem jeito. Mas deixando claro que não vamos abdicar do Brasileiro.
Mas como administrar para ficar no G-6 do Brasileiro, em posição de Libertadores?
Falando a verdade, nosso orçamento não é para isso. Mas vamos brigar. Não temos essa responsabilidade, mas queremos.
Onde é possível chegar na Libertadores e Copa do Brasil?
A gente vai jogo a jogo. Para alguns, não chegaríamos nem aqui. Já estamos comemorando um ano de sorte. Um amigo meu dizia que estávamos dando sorte. Que sorte é essa que dura 11 meses?
Até a arquibancada reclama quando este Botafogo é muito ofensivo…
Eu tenho o defeito de falar a verdade. Eles compraram porque vocês falam. O que eu escuto nas ruas é exatamente o que vocês falam nas coletivas e o que sai no jornal, com as mesmas palavras. É CTRL C + CTRL V. Eles compram a ideia que vocês passam, vocês têm um poder muito forte.
Você gostou do time na ida contra o Nacional?
O resultado foi muito bom. O desempenho, médio. Mas não merecemos perder, eles não criaram o suficiente.
Mas um time pior do que o Botafogo fez a bola rondar demais a sua área…
Mas isso não foi estratégia. Não estávamos conseguindo. Essa coisa de sofrer é legal: falei que o jogo com o Atlético-MG não precisava ser sofrido. Na rua, falaram: “Tem que ser sofrido sim, isso é Botafogo.” Isso é meio sado, né? Não quero sofrer, quero viver tranquilo. Muricy parou, Ricardo Gomes teve AVC, Oswaldo quase teve um ataque aqui… Eu não quero isso, quero viver bem.
Virar técnico mudou sua rotina? Na rua, por exemplo?
No momento é para o bem porque estamos bem, mas é bem complicado. Eu faço tudo mas evito algumas coisas. Por exemplo, quando perdemos um jogo, sempre vou escutar alguma coisa no mercado. E uma coisa triste é que hoje em dia parece que ninguém quer te dar parabéns. Você tem a obrigação de vencer e é execrado quando perde. Não tem parabéns. A intolerância sobe. Quando você ganha as pessoas viram a cara e, quando perde, é apedrejado. As pessoas curtem o momento ruim. Têm prazer, se divertem. Eu vejo isso em redes sociais…
Qual time você viu e falou: “Queria que meu time jogasse assim?
O Atlético de Madrid do Simeone, taticamente, é um absurdo. Sem grandes investimentos, venceu times fora de série como o Barcelona, fez final de Champions. Vi um atleta falar: “Se o Simeone mandar a gente pular da ponte a gente pula”, ou seja, ele tem um poder de persuadir. E isso eu acho legal. Também gostei muito do time do Tite em 2012, o que foi campeão mundial. Ganhava de 1 a 0, 1 a 0. Peguei muita coisa dali também: sempre cinco defendendo, um time muito equilibrado. Eu não sou contra valores individuais, são o grande espetáculo. Mas para o treinador, grande espetáculo é jogo tático. Não quer dizer que o grande jogador não define: todo treinador quer um grande jogador, porque hoje o jogo está tão tático, tão estudado, que o cara que tem o poder do drible já quebra o sistema. Antes, os treinadores não tinham mercado fora porque tínhamos muitos valores individuais. E perdemos a tática. Agora somos obrigados a equiparar a tática com eles, porque só com os valores individuais não dá mais. E hoje temos o melhor técnico do Brasil treinando a seleção. Para nós, técnicos, isso é bom porque abre um mercado.
Simeone é um modelo para você?
Não, não. Eu uso ele pelas semelhanças de circunstâncias.
Você é adepto da teoria de que um time começa com a defesa?
Eu começo sempre na defesa. Se não toma gol, já tem meio caminho andado. Nosso time sofre poucos gols.
Como vê o Corinthians, líder do Brasileiro?
Tem gente que diz: “Lembra um pouco o Botafogo”. Pera aí: Jô é jogador de seleção brasileira, Arana é seleção, Fagner, Rodriguinho, Jádson… Não dá para comparar com a gente. Calma. Eles não têm o elenco do Palmeiras mas têm um grande time. É muito bem organizado, mas é um grande time no papel, não dá para comparar. Se colocar a nossa força e a deles nem chega perto. Estamos falando de um time que é hexacampeão brasileiro.
Se você fechar o olho agora e pensar, “quero terminar o ano assim”…
Eu queria muito coroar esse trabalho do Botafogo com um título. Sei que é difícil, mas esses dois mata-matas são ideais. Deixar esse legado aqui.
Imagina se for a Libertadores…
Trabalho pra isso.