Da piscadinha e nome pichado no muro aos títulos da Libertadores e do Campeonato Brasileiro pelo Botafogo como capitão. Marlon Freitas deu uma volta por cima em momentos vividos intensamente no Glorioso. Em ótimo texto publicado no site “The Players’ Tribune”, ele relembrou episódios marcantes.
Um deles foi quando foi um dos principais alvos de protesto da torcida do Botafogo.
– Tá pra fazer um ano… Eu não esqueci e acho que nunca vou esquecer da sensação terrível que foi. Sempre que penso nisso me dói a cabeça, as pernas, me dói a alma, sabe? Era uma sexta-feira, fevereiro do ano passado. A atmosfera no clube pesava de tensão e desânimo. A gente vinha daquele balde de água fria monumental no Brasileiro de 2023 — deixar o título escapar daquele jeito, como pode?! —, não tinha engrenado no Carioca e, dois dias antes, na quarta, empatamos na Bolívia pela Pré-Libertadores. Meu Deus do céu, pra onde estamos indo? – iniciou Marlon Freitas.
– Aí de manhã as notícias começaram a chegar: “Torcedores picham Engenhão e pedem saída de jogadores”, “Protesto nos muros do Nilton Santos”, “Torcida irritada com o Botafogo” Pim, pim, pim, pim, meu celular parecia uma metralhadora de notificações. Texto, áudio, vídeo, chamada não atendida de tudo quanto é lado. E o pior: fotos das pichações. Eu fui passando uma por uma. “Time sem sangue”, “Covardes”, “Pipoqueiros”, “Saiam do Botafogo” . Só tinha sentimento ruim escorrendo junto com aquela tinta spray no muro do nosso estádio. Raiva, decepção, revolta, desilusão. Eu olhava as fotos na tela do meu celular e não acreditava ao ver meu nome ali: “MARLON FREITAS RALA FDP”. Mano, eu fiquei sem reação. Das profundezas, olhava pra cima em busca de socorro. Olhava à procura do meu pai, o cara que sempre me socorreu em horas de aflição como aquela – lembrou.
Foi no falecido pai que Marlon Freitas buscou forças, relembrando do sonho de ambos de que ele se tornasse jogador. E de que a superação começou desde que foi mandado embora do Fluminense após uma semana de testes, ainda bem antes de se profissionalizar pelo clube.
— Filho, eu sei que essa é uma hora dura. Mas escuta bem o que eu tenho pra te falar. O nosso sonho vai se realizar aqui, justamente aqui onde ele está sendo interrompido hoje. Faz tempo que essa convicção bate no meu peito: você vai ser jogador profissional e vai ser dos grandes. Eu ainda vou te ver jogando no Maracanã. Mas pra isso você tem esmagar todos desafios que vão aparecer pelo caminho. Todos! O de hoje é só o primeiro – disse o pai a Marlon Freitas.
Leia outros trechos do texto:
Força vinda do pai
– Guardei as palavras do meu pai no lugar mais protegido do meu coração e desde então recorro a elas pra me conectar com ele e comigo mesmo, nos bons e nos maus momentos. Sinto uma saudade imensa dele, que teve tempo sim de me assistir no Maracanã. Naquela tarde em Chapecó (jogo dias após a morte do pai) em que eu comecei jogando de titular, o rosto sorridente dele na nuvem me pareceu uma mensagem que só eu podia decifrar: “Tá vendo, moleque! Eu não falei? Você está no lugar onde sempre quis estar e é por isso que eu estou feliz. Agora vai jogar! Eu vou estar do teu lado”.
– Era como se dali em diante a minha vida tivesse decidido andar só pra frente, nunca mais pra trás, e de todas as experiências, incluindo as que me jogassem no fundo do poço, eu tiraria o gás pra continuar caminhando. Os desafios me moveriam. E quando não houvesse desafio, eu inventaria um.
Botafogo
– Cheguei no Botafogo já me desafiando. Quando vesti a camisa do Fogão pela primeira vez, no dia da apresentação, eu estabeleci a minha primeira meta: provar que jogadores da Série B têm condições de jogar na A, eles valem sim o investimento. Jogar todo mundo sabe, o que acaba determinando o sucesso ou o fracasso é o ambiente, o sistema de jogo, as lesões, as condições de trabalho, como cada um lida com o carinho ou a pressão da torcida, a relação com o treinador, o profissionalismo, todas essas coisas…
– E a minha meta se encaixava bem nas do Botafogo àquela altura. Na verdade, as metas do clube eram bem maiores. Investidor estrangeiro, novo modelo de administração, desejo de ganhar títulos, ser protagonista no futebol nacional, disputar Libertadores… Enfim, devolver o Botafogo à grandeza histórica dele. Como eu estava nesse espírito também, perfeito. Pra completar, a diretoria deixou claro que estava escolhendo a dedo os jogadores pra nova fase do clube. “Se te escolheram é porque tem coisa reservada pra você”, era como se eu ouvisse a voz do meu pai.
Piscadinha
– E, por fim, eu estava voltando pra casa, pro Rio de Janeiro. Ia contar com a família por perto, com os velhos ombros conhecidos onde eu poderia me apoiar quando as horas mais sombrias viessem. Porque elas viriam, sempre vêm. Eu só não achava que eu mesmo, num erro besta, me empurraria para o fundo do poço. Tô falando da maldita piscadinha na partida contra o Palmeiras, vocês lembram. O jogo em que abrimos 3 a 0, tomamos uma virada inacreditável e perdemos o título do Brasileiro de 2023. Eu não gosto de falar a respeito, mas vou contar pra ver se exorcizo isso da minha vida. Não quero carregar mais.
– Hoje em dia, agora que fomos campeões, tem torcedor do Botafogo e de outros times que chega pra tirar foto comigo dando uma piscadinha. Isso me chateia bastante. Porque a impressão que ficou, e muita gente disse assim, foi que eu desrespeitei o meu clube, o adversário, o futebol. E eu nunca fui esse cara. Eu não quero ser esse cara. Pelo contrário. Isso aqui é o meu sonho de menino. O sonho do meu pai. O futebol é sagrado pra mim. Então vamos combinar uma coisa: se quiser foto comigo dando piscadinha, nem cola porque não vai rolar. A lembrança desse episódio me dói demais, porque eu sei que errei. Não por maldade, mas errei, e agora que aprendi na dor eu gostaria de enterrar esse erro pra sempre.
– Bom, foi assim. Eu sofri uma falta no meio de campo quando o jogo estava 3 a 3. O nosso time estava chateado, mas o resultado ainda nos mantinha na disputa do título. Aí o zagueiro do Palmeiras chegou gritando que não foi nada, que eu tinha cavado e estava fazendo cera. Coisa normal de jogo. Em vez de retrucar com palavras, bater boca e tal, eu, ainda no chão, dei a piscadinha pra ele. Como se dissesse: “Isso aí, irmão”. Soou como um deboche e por isso me arrependo tanto. Eu deveria ter dito algo pra ele, o jogo de futebol é muito falado o tempo todo, mas por impulso fiz o gesto. A coisa tomou a proporção que tomou e eu fiquei marcado individualmente por isso, se já não bastasse ter ficado marcado no plano coletivo pela perda do título e aquele fim de ano melancólico pra todos os botafoguenses.
– Eu sentia tanta vergonha que nas férias comprei passagem pro lugar mais distante que encontrei: Tailândia. Mas quase não aproveitei. Passava os dias pensando que tinha dado razão para aqueles dirigentes que duvidam que jogador de Série B consegue aguentar a bronca na Série A. Não chegava a ser um passo atrás, mas se eu quisesse continuar andando pra frente eu precisaria recomeçar do zero.
Volta por cima
– Decidi que se tivesse a chance de continuar no Botafogo em 2024, e como eu queria continuar!, eu sorriria pouco, pra não correr o risco de sorrir na hora errada, e festejaria só no final — festejaria os títulos, não jogos. Por isso vocês me viram ao longo do ano sempre correr sozinho pro vestiário ao término das partidas. Era hora de agradecer, fazer a minha oração, e pensar no adversário seguinte. Seguir trabalhando duro, com muito foco e pouca distração.
Virar capitão
– Quando voltei pro Rio depois das férias, muitos jogadores tinham saído e outros tinham chegado. O Tiago Nunes, nosso treinador, começou a escolher os capitães e eu era um deles. No meu primeiro jogo como capitão, tirei uma foto da faixa, que estava sobre o uniforme, no meu cantinho no vestiário, e mandei pra minha esposa com uma mensagem: “Vou de capitão do Glorioso hoje. Que Seu Nilton Santos me ilumine”. E acho que em conchavo com meu pai lá no céu, ele me iluminou mesmo, porque eu continuei capitão com a chegada do novo técnico, o Artur Jorge.
– Mais do que isso: eu encerraria a temporada como o único remanescente de 2023 no time titular campeão brasileiro e da Libertadores em 2024. Com o Artur Jorge, além de exercer a liderança dele dentro do campo, eu passei a falar ainda mais com os companheiros antes dos jogos. E foi justamente num momento desses em que estamos só nós, jogadores e comissão técnica, prestes a subir pro campo, e o capitão dá a letra, que eu retomei definitivamente a estrada da minha vida.
– Palmeiras x Botafogo, Allianz Parque, 36ª rodada do Campeonato Brasileiro. A gente fecha a roda no vestiário e eu começo a falar. Não lembro de todas as palavras, mas repeti muito coisas como… “Tinha que ser aqui!”, “Tinha que ser contra eles!”, “Sempre duvidaram de nós e nós estamos aqui, porque eu acreditei em você, você acreditou nele e a gente cuidou um do outro!”, “Tinha que ser aqui!”. Tudo seguido de um monte de palavrão, né?, que nessa hora é difícil evitar. Foi naquele jogo do returno contra o Palmeiras que eu realmente senti que tinha dado a volta por cima. Eu ali, tomado pela adrenalina, ouvi até o Mister dizer baixinho: “Vai ser aqui, c*****!”. O resultado, vocês sabem: 3 a 1 Botafogo, vitória que nos colocou de volta na liderança do campeonato.
Título da Libertadores
– Ainda tinha a final da Libertadores pela frente. Expulsão do Gregore aos 30 segundos na final, 30 segundos de jogo!, a nossa capacidade de reorganização rápida pra resistir com um jogador a menos, pra só então gritar “É campeão!” junto com aquela multidão botafoguense impressionante que invadiu a Argentina.
– Mas foi naquele jogo do returno contra o Palmeiras que eu realmente senti que tinha dado a volta por cima. Ter vencido daquele jeito, na casa deles, depois de tudo que aconteceu no ano anterior, transformou o meu nome pichado no muro do Engenhão em uma lembrança velha, um dos tantos desafios que meu pai avisou que eu teria de esmagar. Ninguém mais tiraria da gente aquele título brasileiro, que, para mim, era um questão pessoal.
– Eu me sentia em dívida comigo mesmo. Por sorte percebi rápido que essa parada de “questão pessoal” é bobagem, uma vaidade. E quem me mostrou isso foi a torcida do Botafogo durante as comemorações dos nossos títulos. Eu olhava aquele mar de gente emocionada nas ruas do Rio, nas arquibancadas, no aeroporto quando voltamos de Buenos Aires, e imaginava quantos ali estavam celebrando também por seus pais, tios e avôs que partiram sem ver o Botafogo campeão de novo. Eu pensava nisso e sabia exatamente o que eles sentiam. Meu pai me assistiu no Maracanã, mas não pôde me ver campeão pelo time do Garrincha, do Didi, do Jairzinho, do Gerson, do Zagallo, do Seu Nilton.
– Mas a vida é assim e eu me orgulho de estar no lugar onde sempre quis estar. A vida é o Botafogo: uma estrela que não ilumina o tempo todo, mas jamais desiste de brilhar.