Da terra arrasada em fevereiro à briga pelo título da Série B em novembro, a trajetória do Botafogo no retorno à primeira divisão não tem um herói definido. Muitos até poderão se lembrar, no futuro, do atacante Rafael Navarro, autor do gol da virada sobre o Operário nesta segunda-feira, ou de Chay, que conquistou a torcida. Mas não será isso que vai explicar como o clube que cortou mais da metade da folha de pagamento do departamento de futebol, começou o campeonato desacreditado e trocou de técnico no meio do caminho devolveu o sorriso aos exigentes alvinegros, que fizeram a festa no Estádio Nilton Santos.
Alguns jargões já batidos no vocabulário do futebol terão de ser usados. A começar pela “gestão profissional”. O bonito termo muito utilizado no mundo dos negócios não pode ser ignorado ao refazer o caminho de um clube que chegou a dever R$ 1 bilhão e tinha a difícil tarefa de disputar vaga com outros grandes do Brasil, como Vasco e Cruzeiro, considerados até em mais condições do que o Botafogo.
A descrença fazia sentido. Além das dívidas gigantescas, o clube caiu pela terceira vez ao fazer sua pior campanha em um Brasileiro. A queda tirou, pelo menos, R$ 100 milhões dos cofres alvinegros e atrasou a possibilidade de conseguir um investidor para se transformar em empresa o quanto antes.
O início do Carioca encavalado com a derrocada no Brasileiro somado à troca de mais de 2/3 do elenco já antecipavam uma transição difícil. A má campanha no Estadual e os primeiros tropeços na Série B não eram uma surpresa diante da reconstrução que se fazia necessária. Nem mesmo a troca de técnico na 14ª rodada era algo totalmente fora do script.
Planejamento mantido
Não quer dizer que a gestão profissional tenha sido capaz de prever cada passo do Botafogo e se antecipar a todos os possíveis erros. O que permitiu que a receita não desandasse foi não mudá-la completamente ao longo do caminho. O projeto iniciado ainda em janeiro, num momento já de total apatia com a queda iminente, teve aval de toda a diretoria e a filosofia foi mantida.
À frente dele, Eduardo Freeland, diretor de futebol do Botafogo, teve de reduzir drasticamente a folha salarial dos jogadores, negociar atletas não mais desejados e contratar dentro das possibilidades financeiras do clube naquele momento. Para minimizar erros, o planejamento tinha alguns pilares: elenco com opções complementares em todas as posições que foram sendo preenchidas ao longo da temporada (Luiz Henrique veio no segundo semestre para ser o “par” do Chay no meio) e perfis pré-estabelecidos que levavam em consideração tanto a parte técnica (liderança, como Carli e Ricardinho) quanto o lado humano dos atletas.
– Quando falamos de profissionalismo, falamos do trabalho baseado em dados, estudos e um embasamento rico para todas as decisões a serem tomadas. Para que não se mude tudo com uma derrota ou outra. A saída do Marcelo Chamusca, por exemplo, foi por uma questão técnica e tática, os encaixes não estavam acontecendo nos jogos. Os jogadores não queriam a saída dele, mas decidimos que era o momento depois do empate com o Cruzeiro. Pensamos muito para não entrarmos no círculo vicioso de troca de técnico. Em 2020, foram cinco trocas. Tínhamos que ser justos e assertivos na saída de um e assertivo na chegada do outro – diz Freeland, admitindo que houve erros na montagem do elenco, como as contratações de Marcinho e Rafael Carioca, que não deram certo e foram negociados.
Aí entra a outra palavrinha mágica: o ambiente. Ao optar por analisar não apenas o talento dos jogadores pretendidos, a diretoria sabia que precisava de um elenco unido e comprometido, sem conturbações internas ou externas. Mesmo nos momentos de maior oscilação, quando chegou a ocupar a 14ª posição e ter apenas 36% de aproveitamento, o vestiário se manteve calmo e a política do clube não interferiu como em outros momentos.
Bom ambiente e química com Enderson Moreira
Enderson Moreira foi contratado dentro dessa filosofia. Ele não era a primeira opção. Lisca foi procurado naquele momento, mas disse não ao Botafogo e sim ao Vasco. A opção por um técnico mais caro e de nome, que custaria mais aos cofres do clube, porém que tem amplo conhecimento da Série B. Mais do que isso, respaldado pela dezena de telefonemas feitos por Freeland em busca de referências do treinador.
A química entre diretor e técnico foi instantânea. Com linguagens e ideias semelhantes sobre futebol, Enderson ratificou os pontos fracos já observados pelo diretor de futebol, que tem larga experiência no campo. O estafe trazido pelo mineiro também encaixou com o corpo técnico fixo do clube.
Bastaram poucos jogos para que o estilo de Enderson fosse incorporado pelo grupo, que teve poucas modificações como as chegadas de Luiz Henrique, Carlinhos e do lateral Rafael. Um time mais consciente e organizado em campo, ofensiva e defensivamente, conseguiu impor seu jogo a partir da 14ª rodada sem grandes oscilações. Alguns nomes se sobressaíram como Marco Antônio e Oyama. Nem mesmo o bate-boca com alguns torcedores na derrota para o Avaí, a primeira em casa depois de oito jogos, desestabilizou o bom ambiente.
– Acredito muito que um ambiente bom traz confiança extra a todos os profissionais envolvidos. Um time confiante pode evoluir mais do que o esperado, até jogar melhor que outros com jogadores melhores. Aquele jogador nota 7 consegue produzir um futebol nota 8. Pensamos muito, em determinado momento, em fazer um trabalho mental específico. Mas percebemos que era uma questão do futebol no campo. Precisávamos dos resultados. Ele trouxe os resultados e isso devolveu a confiança ao elenco – analisa Freeland.
Primeiros tijolos
A duas rodadas do fim da temporada, o Botafogo pode e deve comemorar o fim de ano até melhor do que se imaginava. Meta alcançada e um título próximo. O embalo do alvinegro, no entanto, não tira os pés do chão de quem sabe que ainda é um clube em reconstrução.
A estrutura para evitar nova queda está estabelecida, mas os desafios serão ainda maiores em 2022. O aporte financeiro da Série A só chegará em maio. Até lá, os recursos ainda serão de um clube da segunda divisão.
– Não podemos achar que vamos sair do cenário de janeiro de 2021 para um de disputa por vaga na Libertadores. Alguns tijolos foram colocados para a reconstrução do clube, mas faltam muitos. Se cuidarmos desse ambiente e mantivermos as pessoas embuídas no espírito de reengrandecimento do Botafogo, por maior que seja a diferença financeira com outros clubes, podemos conseguir ir bem, como outros vêm fazendo na Série A.
Em nove meses, o Botafogo renasceu, recuperou a autoestima e agora pode dar os primeiros passos para reconstruir sua história gloriosa.








